Aula 2
O fazer como um conhecimento
A todo o momento realizamos movimentos. Todos os movimentos que realizamos foram aprendidos e, com a sua repetição, foram aprimorados. Sem a experimentação, que quer dizer colocar em prática, experimentar o movimento, esse aprendizado não poderia ser efetivado. Essa colocação é ao mesmo tempo óbvia e crucial para a Educação Física. Os alunos chegam à escola sabendo se movimentar.
Cada um tem muitas experiências com movimentos, de um tipo ou de outro, de acordo com o seu ambiente físico e social. O que ensinar a esse aluno nas aulas de Educação Física que seja específico da disciplina e que eles só poderão aprender na escola? Se um aluno participa de treinamento de futebol fora da escola, o que devemos ensinar na escola sobre o futebol? Como fazer para que o aluno perceba que o fazer é um conhecimento?
Exemplificando
Imagine que, neste momento, você irá ensinar alguém a andar de bicicleta ou a nadar. Como explicaria sobre essas duas atividades para a pessoa que está aprendendo ou que nunca as realizou? Para andar de bicicleta, provavelmente você diria “suba na bicicleta, tome impulso para se equilibrar e saia pedalando seguindo em frente” ou então diria que a pessoa tomaria um impulso e depois subiria na bicicleta e pedalaria em frente. Para se ensinar a nadar seria a mesma coisa, ensinaria os movimentos dos braços, das pernas, da respiração, talvez sobre um banco, antes de entrar na água. Essas informações seriam suficientes para que a pessoa aprendesse a andar de bicicleta ou nadasse? É certo que não. Mesmo que explicasse sobre os materiais da bicicleta, as características da água ou os princípios da física presentes nas duas atividades, certamente a pessoa só aprenderia experimentando a bicicleta ou entrando na água (piscina ou em outro local).
Agora vamos supor que você fosse ensinar a pessoa utilizando a bicicleta em um local plano e desimpedido. Ou então numa piscina utilizando materiais adequados. Após um tempo de experimentações, as pessoas aprenderiam a andar de bicicleta e a nadar. Se antes não sabiam e depois passaram a saber, significa que adquiriram um conhecimento, um conhecimento que só pode se obter fazendo, ou seja, por meio da experimentação. Nesse caso, o andar de bicicleta e o saber nadar são um conhecimento da ordem do saber fazer.
É desse conhecimento que a Educação Física trata. É um conhecimento que é de ordem pessoal ou tácito e que só se adquire pela experiência. É um conhecimento difícil de ser declarado ou explicado para outra pessoa e que é pouco valorizado ou pouco compreendido na escola, e mesmo talvez na nossa sociedade de um modo mais geral, porque estamos mais habituados a trabalhar com conhecimentos de outra natureza, que podemos chamar de conhecimentos explícitos ou declarativos. Ao mesmo tempo, o conhecimento pessoal é valorizado no trabalho por competências. Observe na imagem abaixo as dimensões das competências gerais propostas pela BNCC:
fonte: site Movimento pela Base, disponível em http://movimentopelabase.org.br/wp-content/uploads/2018/03/BNCC_Competencias_Progressao.pdf acesso em junho de 2019.
Algumas competências gerais da BNCC, como as relacionadas à empatia, cooperação e argumentação, por exemplo, são desenvolvidas numa perspectiva pessoal com o conhecimento. Vejamos como isso pode se relacionar com a aula de Educação Física.
Numa aula convencional, todos têm que aprender um determinado conteúdo do mesmo modo. Esse é um procedimento que devemos evitar nas aulas de Educação Física, tendo em mente que é fundamental que todos aprendam os conteúdos, mas que isso não necessariamente ocorrerá do mesmo modo para cada aluno. Como conduzir as aulas no sentido de que os alunos compreendam que estão aprendendo algo durante as aulas de Educação Física?
Esta é uma questão importante e para qual não existe uma única resposta. Sabemos que ela não significa que devemos passar a dar aula na sala de aula assim como os outros componentes. Nesse aspecto, conforme dissemos, o trabalho por competências proposto na BNCC auxilia em parte na resolução dessa questão.
Quando propomos uma atividade nas aulas de Educação Física, a experimentação adquire um significado diferente para cada um. Em outras palavras, uma mesma atividade gera sensações diferentes de acordo com aquele que a pratica. Alguns podem ter dificuldade em realizar as tarefas e até sentir desconforto durante a prática, enquanto para outros a tarefa pode ser fácil demais e entediante, visto que esse conhecimento é de ordem pessoal.
É importante que se criem momentos de discussão sobre as sensações que os alunos tiveram depois das experimentações, pois, ao poder verbalizar o que fizeram e o que sentiram, discutindo sobre as sensações e os desafios impostos pela atividade, os alunos menos hábeis podem refletir sobre os recursos que já possuem e sobre aqueles que eles precisam para resolver determinada tarefa, enquanto os alunos mais hábeis podem impor a si maiores desafios e reconhecer que podem colaborar com os menos hábeis. Nessa lógica, o resultado é menos importante que o processo.
Os alunos aprendem a analisar os recursos que possuem para solucionar os desafios, bem como a buscar meios externos no caso de seus recursos serem insuficientes, como, por exemplo, a sugestão dos colegas ou a orientação do professor. Nesse processo, além de perceberem que estão fazendo e conhecendo, os alunos aprendem sobre como aprender. Sempre ao final das aulas é importante possibilitar que os alunos relatem o que aprenderam, ou seja, aquilo que não sabiam fazer antes e agora sabem. E sempre reforçar que, se passam a saber fazer, então aprenderam algo.
O que acabamos de descrever sobre a verbalização das experiências e sentimentos é uma possível forma de se tentar traduzir um conhecimento de ordem pessoal num conhecimento declarativo. Uma outra maneira de tornar mais aparente esse conhecimento pode ser a utilização de uma tabela. Nela os alunos irão descrever as sensações, as dificuldades, as sugestões compartilhadas, as impressões após as experimentações e aquilo que não sabiam ou não conseguiam fazer e puderam aprender após as experimentações.
Sensações
Dificuldades
Sugestões
Registro das experimentações
O que não sabiam ou não conseguiam fazer e aprenderam após a atividade
Há um outro aspecto que a BNCC propõe e sobre o qual também é importante refletirmos a respeito: trazer o foco para os alunos e não para o conteúdo. Quando propomos uma atividade, muitas vezes nos preocupamos que os alunos realizem o movimento da forma correta.
Exemplificando
Se estamos ensinando sobre uma modalidade esportiva, como o voleibol, e queremos que os alunos aprendam as habilidades motoras necessárias para a prática, é comum nos preocuparmos em ensinar o movimento do toque, da manchete, do saque e da cortada corretamente. Para isso, muitas vezes demonstramos aos alunos e solicitamos que repitam o movimento várias vezes, aprimorando suas habilidades.
Na lógica da BNCC, que é voltada para o desenvolvimento de competências e propõe que os alunos sejam autônomos e protagonistas, pode-se iniciar simplesmente dando uma tarefa aos alunos:
vocês têm que fazer a bola chegar ao outro lado passando por cima da rede
Os alunos têm, então, uma intenção e um objetivo a ser cumprido. Por meio de uma ação, o aluno executa a tarefa, para isso, ele realiza um movimento. A qualidade dos movimentos ao cumprir a tarefa depende da habilidade que se tem ao realizá-los.
Os alunos irão, dentro dos seus recursos, tentar resolver a tarefa e para isso irão realizar uma série de movimentos. Isso significa que, para resolver a tarefa, existem inúmeras possibilidades, ou seja, quanto maior for a quantidade de movimentos possíveis para se resolver uma tarefa, maior será o seu grau de liberdade de escolha para que se possa cumpri-la.
Se a intenção do professor for a de que os alunos se apropriem de determinados movimentos específicos, como por exemplo, os movimentos técnicos da manchete, ele pode propor aos alunos a tarefa de direcionarem a bola para um companheiro ou para determinado local da quadra, e indagar a eles de que modo essa tarefa poderia ser executada de modo mais controlado. Os alunos devem refletir sobre o que fizeram e, após experimentações e diálogos entre eles e com o professor, perceber que rebater a bola com os dois braços possibilita melhor direcionamento, para isso os braços devem estar alinhados. Para isso há uma forma de posicionar as mãos que facilita nesse alinhamento.
Neste processo, inicialmente permite-se aos alunos que utilizem seus recursos para realizar uma tarefa. Na sequência, eles são estimulados para que tentem realizar a tarefa de diferentes maneiras, ampliando seus recursos e se apropriando de novas habilidades. No final, os próprios alunos chegariam num consenso sobre qual seria uma forma mais rápida e eficiente de cumprir a tarefa.
A todo o momento o professor possibilita o diálogo para que os alunos percebam que inicialmente tentaram cumprir a tarefa a partir de seus recursos próprios, em seguida tentaram resolver a tarefa de maneiras diferentes, o que proporcionou a experimentação e incorporação de novas habilidades e, no final, aprenderam que, dentro das diversas possibilidades de se executar uma tarefa, existem algumas que são mais eficientes.
Numa lógica voltada para o treinamento esportivo, os movimentos passam a exigir habilidades mais refinadas. Nessa perspectiva, as possibilidades de se realizar uma tarefa são reduzidas, pois exigem movimentos mais específicos. Por exemplo, num treinamento de basquete os alunos não podem conduzir a bola quicando com as duas mãos. Ou andar segurando as bolas com as mãos.
Fonte: Manoel, E. J., 2019.
Toda tarefa tem uma intenção e um objetivo por parte de quem a executa que é realizada por meio de uma ação.
Pode-se chegar ao objetivo por meio de vários movimentos diferentes (representadas pelos riscos em azul, preto, vermelho e roxo). Por exemplo, na atividade proposta os participantes realizaram vários movimentos diferentes para cumprir os objetivos. A qualidade com que se alcançam os objetivos por meio dos movimentos é referente à habilidade que se tem para realiza-los.
Quanto maior a quantidade de movimentos possíveis para se realizar uma tarefa, maior o grau de liberdade de escolha por parte de quem os executará.
Uma condução de aula feita do modo como acabamos de sugerir remete a diversas habilidades da BNCC sobre as quais discutiremos melhor em nosso próximo módulo. Lembrando que as habilidades na BNCC são aprendizagens essenciais que atuam em conjunto para o desenvolvimento das competências gerais. Nesse formato de aulas, seria possível possibilitar algumas aprendizagens aos alunos que estão em diversos objetos de conhecimento da BNCC:
Reconhecer que uma tarefa pode ser realizada de diversas maneiras, independente das habilidades de cada um.
Identificar e valorizar as aprendizagens dos movimentos que aprenderam ou aprimoraram durante a aula.
Perceber que existem diferenças de habilidades entre os colegas que devem ser respeitadas.
Objetos de conhecimento da BNCC
Perceber que existem maneiras mais rápidas e eficientes de se executar uma tarefa, que são valorizadas nos esportes e outras práticas corporais.
Reconhecer que todos têm potencial para se desenvolver e realizar os movimentos mais específicos.
Compreender que os movimentos são influenciados pelo ambiente social e pela cultura local.
E, com essas considerações, finalizamos este módulo de aula. Sugerimos a você, professor, que assista aos módulos subsequentes que complementam este curso.
Relembrando
Neste módulo discutimos sobre o objeto de estudo da Educação Física e a sua relação com o conhecimento escolar na perspectiva da BNCC.
Vimos também que o professor deve trazer o foco para os alunos e não para o conteúdo.
E que o professor deve possibilitar que os alunos percebam que, dentro das diversas possibilidades de se executar uma tarefa, existem algumas que são mais eficientes.
Parabéns!
Você chegou ao final do Módulo 1 - A Educação Física e o conhecimento escolar
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